Perdemos...
Não sei se seria corriqueiro, mas a julgar recentes demolições e decisões incidentes no patrimônio histórico da cidade, dizer que "perdemos" não é errado. E não sou eu que o digo apenas.
Não é depor contra o progresso tão repetido em verso e prosa pelos defensores da dita "especulação" que põe abaixo o patrimônio histórico ou não dá a ele o uso devido para a comunidade e não apenas a um determinado grupo. A roda da economia gira e a deter é impossível, todos sabem.
Volto a ser sincero ao leitor que espera uma crônica que remeta a nossa história. Sempre é o objetivo e nunca mudei ele desde quando pisei pela primeira vez aqui no AJ falando do sócio inglório de Dr. Blumenau. Desvendar verdades, recordar fatos fazem parte deste espaço, sempre com descontração e poesia.
A riqueza histórica de Blumenau enche os olhos, mesmo que quem está em volta não entenda o deslumbramento quando estamos diante de um ponto, um lugar onde a história, de fato, se fez. Você entra no Shopping H e reconhece o ponto inicial da Cia. Hering. Você frequenta o Carlos Gomes e o chama de Frohsinn. Você ouve a Rádio Clube com o indisfarçavel orgulho de saber que é a primeira rádio de Santa Catarina.
Mas o desconhecimento é normal? Claro, ninguém tem por obrigação saber de tudo. Só que desconhecer e fingir não saber, negligenciar o mesmo saber, é tão criminoso quanto. O descconhecimento que, como exemplo aqui, mata nosso patrimônio histórico e o coloca abaixo em nome desta verticalização que cria projetos cópia-carbono um do outro ou, simplesmente, instala algo desconexo dentro da nossa clássica Palmenalle.
Palmenalle, Boulevard Wendeburg, Alameda Duque de Caxias ou, na linguagem coloquial, a "Rua das Palmeiras" e seu entorno. Você anda por ali, talvez frequente ou trabalha na Câmara de Vereadores, almoçava na Thapyoka, pega livros na biblioteca, frequentou eventos ou maratonas em domingos, visitou o Museu da Família Colonial ou até, em tempos passados, lembra de alguma farra no Pedro Linguiça ou gritou gols nas arquibancadas do Deba.
Este pedaço de chão no começo da XV, entre o Ribeirão Fresco, o Vorstadt e o Garcia, é o ponto basilar de Blumenau, o começo de tudo, o Stadtplatz. Palavrão desconhecido por, especialmente, quem "tem a caneta". O "lugar da cidade" na tradução livre. Um canto que vive uma realidade dupla: metade dele tem grande valor e vira palco de eventos, o outro é um papel esbranquiçado sem valor nem ocupação, mesmo ali guardando vultos no silencio ruidoso de cada dia.
O marco incial de Blumenau é na Rua das Palmeiras, está lá até hoje cercado de casarios e histórias que os livros e registros salvos nos desvios do tempo contam para todos. A primeira concentração urbana da cidade, a primeira casa administrativa da colônia onde eram demarcados os primeiros lotes aos colônos que rumavam nas direções concedidas para recomeçar a vida.
Aquele pedaço de chão era onde a vida da colônia acontecia. Famílias importantes, pequenos e grandes comércios, clubes, vida religiosa, tudo girava por ali. Basta a gente enxergar em volta e vamos perceber que cada canto tem uma história pra contar, uma coluna para se escrever, tamanha a riqueza despercebida no nosso dia a dia.
Dr. Blumenau morou ali, nas mesmas imediações. Gustav Sallinger prosperou com seu negócio de importação e exportação aproveitando-se da proximidade com o porto e virando sinônimo de prêmio empreendedor. O América é, ate hoje, o orgulho do esporte mesmo sob a sombra de um esqueleto resistente ao tempo e a morosidade da justiça de hoje.
Ali também o visionário Carlos Koffke abriu o primeiro modelo de supermercado do estado. Era o endereço da Empresa de Força e Luz cujo próprio é ocupado até hoje pela Celesc. O Palmeiras lotava as imediações nos derbies dominicais do futebol. Os luteranos, ao percorre-la, viram ao longe surgir na colina o vulto da Igreja do Espírito Santo, ao fim do trajeto.
Mas o tempo cruel passa, o Stadtplatz passou. Hoje é um referencial histórico, mas páginas de livros e contos orais não sustentam o que a percepção ocular ou tatil podia sentir e viver com mais profundidade. A placa saudando os que entram no "Centro Histórico" é mera formalidade e a falta de um olhar firme e memorialista ao lugar deixa ele a margem, na mão de qualquer decisão distorcida do que ele realmente é.
Blumenau teve a chance de dar o exemplo dando ao Stadtplatz a atenção digna e a proteção que ele merece, voltando ele para a comunidade em forma de outros aparelhos ou numa rigidez maior quanto ao que pode ou não pode naquele metro-quadrado. Mas há tempos, pensar em preservação é uma ofensa sem tamanho e "atravanca os negócios".
É por isso que revolta quando, em nome de uma solução empregatícia e de segurança com vistas a vagas de estacionamento, arremata-se firmemente pela simples vulgarização do lugar. Aquela famosa rede de varejo brusquense que tomou conta do Brasil, de qualquer ponto "construível", chega ao nosso Centro Histórico descartando as extravagancias normais em surgimento de mais um onipresente "enxaimel fake" como saida para evitar o pior.
Empregos se geram com um modelo desse em outro lugar da cidade. Segurança se faz com um modelo de construção no local que respeite a história e seja útil para a cidade inteira. Lamentavelmente, e por mais uma vez, Blumenau perdeu a oportunidade de negar o "comum" em nome de um passado cada vez mais fragmentado, tornado entulho e registrado apenas nas lentes de influenciadores.
Mas não há mais o que protestar. O estaqueamento está feito e, logo tal como um bolo instantâneo, crescerá uma "casa enxaimel", um definitivo que distorce o significado o uso para a comunidade em forma de mercantilismo. Virão empregos e quem frequenta o Tabajara vai sorrir com mais vagas de estacionamento. Irônico, o mesmo Taba, pioneiro caça-e-tiro da cidade, tão exclusivo quanto respeitoso com a história que tem.
Lá em 2021, na primeira discursão juridica do projeto, o representante da OAB naquela de tantas reuniões, Dr. Herley Rycerz Júnior, deixou uma frase: "esta obra não se enquadraria bem ao lado da Torre Eifel, do Coliseu, da Torre de Belém ou da própria Casa Branca, em Washington".
Consequentemente, também não seria no Stadtplatz, onde toda esta Blumenau heróica, confusa e provinciana começou.
Mas enfim, perdemos de novo e o centro histórico fica, cada vez mais, nos livros e nas lentes dos influencers.
Perdemos, bora construir.
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