Royal
Desbotado
Deselegante
Desligado
Enegrecido nos cantos
Empobrecido
Vazio
Largado
A casa
De pedras
E opalas
O salão azulado
Real
Derrocada central
Indiferente
A correria
Ao picho vil
A crua ruína
Janelas fechadas
Esquina
Que ja viu riqueza
Alegria
Seis cilindros
Cambio automático
Hidramatico
Dramatico
Tempo sabático
Jaz colorido
Carnaval político
Abandono urbano
Leiloeiros
Sem plano
E morre
Com suas peças
Papéis e nanquim
Mata-bordões
Carimbos
Gravatas americanas
Quando virá?
As maquinas
O mecenas construtor
Derruba?
Esfaqueia e anula?
Progressos
Regressos
Silencios e escombros
Hipotéticos, temerários
Tombos
Royal
Desbotado
Deselegante
Desligado
Enegrecido
Empobrecido
Vazio
Largado
Vai-se memoria
Da gente viva
Da gente morta
Opala
Fecha a porta
Casa Royal
Faz algum tempo que escrevi a poesia acima, voltando à casa depois de uma noite no rádio. Parado no semáforo da Namy Deeke, me vi sozinho, eu dentro do carro e o vazio e escurescido prédio da outrora gloriosa Casa Royal.
Royal: um nome que, por si, já denotava a pompa e nobreza de quem lá entrava e saia com um carro zero. Lembro de ter ouvido de um velho camarada, pai de um amigo meu e que fez toda a carreira de vida dentro daquele salão: "vi teu avô sair daqui com o Opala zero que ele comprou".
Era um seis cilindros, sedan bronze, 1972. Foi utilizado por anos na praça como taxi, mas não perdia a pompa de carro nobre que tinha desde que saiu pela porta principal da Royal, nos anos 1970. Movimento visto a exaustão pelo velho e sorridente "Zeca Royal", amigão de outros tempos e outras lidas com automóvel.
A Royal foi ponto de referencia do centro, motivo para uma parada leve no caminhar para os entendidos de carro, especialistas ou "de fim de semana". Nasceu em 1931, pelas mãos de Weise e Nienstedt, dois sócios empreendedores que lá abriram uma empresa de revenda e conserto de motocicletas, bicicletas, aparelhos de rádio, máquinas de costura e outros.
Pouco tempo depois, a empreitada ganhou o sobrenome mais famoso: o de Herbert Willecke, que deixou o emprego no Banco Agricola para embarcar na empreitada. Tornara-se a maior revendedora de motocicletas Zundapp, famosa marca alemã, na América Latina, em números per capta.
Não demorou muito, e das motos passou aos carros, tornando-se referencial da marca da gravatinha, a Chevrolet, uma das pioneiras em fabricação de automoveis no Brasil. Antes da tradicional Santa Clara, falar nos automóveis feitos sob o escudo do velho Louis era falar da Royal na cidade, um ponto moderno, de certo luxo, exemplo empreendedor e motriz para a própria Rua 7.
O capitulo de meu avô era um de tantos neste lado fleumático que cercava aquele salão onde até mises Brasil estiveram desfilando suas curvas e, as vezes, saindo motorizadas de lá. Ingrid Budag, em 1975, foi um exemplo, deixando a agência com um belo agrado: um Chevette zero, cortesia da própria loja a então realeza da beleza nacional.
A Royal tinha todo seu estilo, sua pompa, seu trato para com os clientes. Não que outras concessionárias daqueles idos não o tivessem, mas há de se registrar relatos que despertam sorrisos e nos fazem voltar ao tempo do kardex, dos jalecos na oficina, das notas batidas a máquina e de relações quase familiares entre a direção e alguns dos funcionários.
Perambulando pelas pesquisas fotográficas para montar a crônica, me deparei com um parágrafo especial: o relato de Marlene Hüskes, ex-funcionária da Casa Royal e que contava, entre muitas reticencias e alguns sorrisos, um relato interessante entre a crueza de uma negociação de venda e o cuidado com um menino irriquieto:
"Uma de minhas atribuições que eu mais gostava era providenciar flores aos clientes e compradores de veículos. As vezes ligava, as vezes ia pessoalmente na loja de flores de D. Elzbeth Willecke e do Sr. Romeu, do outro lado da Rua 7 de setembro. Esperava ficar pronto, trazia e colocava no carro. Era gratificante para mim este pequeno gesto, trazer esta alegria para alguém.
Alem de vender automóveis, a Casa Royal vendia caminhões. Vinham os senhores do interior de Santa Catarina, as vezes proprietários de madeireiras. Compravam dois, as vezes três caminhões de uma vez.
Um dia, entrou um senhor, a esposa e o neto de uns 6 ou 7 anos. Negociações seguindo, o menino ficou impaciente, muito impaciente, e a campainha da sala do sr. Rui tocou. Ele perguntou se eu poderia levar o menino para conhecer a Rua XV.
O menino já queria sair correndo, mas o chamei e lhe expliquei como seria o nosso passeio. Primeira instrução: sempre dar a mão para atravessar a rua.
Fomos ao jardim do Teatro Carlos Gomes, expliquei o que era o prédio, o que acontecia lá: teatro, musica, corais e instrumentos, exposições, dança. Entusiamei-me, e fomos conhecer a Rua XV e suas historias, e o menino dava a mão no automático para atravessar a rua. Quase esquecemos do tempo.
Voltamos para almoçar, as negociações terminariam a tarde. Os caminhões foram vendidos. Encontrando o madeireiro, nos corredores da loja já na parte da tarde, disse-me que o neto ficou encantado com nosso passeio e só falava disso.
Então entregou-me um envelope com um valor. Fiquei constrangida, era meu trabalho, mas ele disse a mim: 'gosto de ver um trabalho bem feito'. Era o valor de um par de sapatos".
Entre momentos nobres a parar o centro da cidade (quando construiu o famoso tunel abaixo da Rua Namy Deeke, nos anos 1990), a Casa Royal parecia que nunca perderia a pompa, mas o quadro foi sendo outro ano após anos. Questões familiares, o fim dos trabalhos como concessionária Chevrolet, uma loja requintada que acabou sendo um relicário, com antigos quadros, prateleiras de madeira vazias e poucos funcionários no seu dia a dia, como o Zeca Royal.
Numa destas tardes de encontro com o Zeca foi a única vez que entrei lá. Não tirei uma única foto (os celulares não permitiam estas coisas ainda). Lembro ainda que o Zeca deixava lá dentro o carro que mantinha com um carinho enorme: um belo Monza Classic SE bordô cuidado como cão de exposição, com todos os detalhes originais e, claro, o dístico da Royal no porta-malas.
Passaram os anos, e a nobreza deu lugar, de fato, ao abandono. Tornado um mero comitê eleitoral em alguns tempos ou pichado e esquecido num canto de nossas rotinas, o salão da Casa Royal, o velho posto de combustiveis e o galpão da oficina com a entrada do tunel viraram, simplesmente, patrimônio morto, reflexo de memórias que por lá ficaram aguardando o fim de imbroglios judiciais.
Recentemente, o anuncio da construção do propagandeado primeiro centro multiuso da cidade e a demolição do antigo prédio motivaram a rever o album de recordações de quem saiu de lá, em outros tempos, sorridente com um carro zero ou um seminovo bem tratado pela reta da Rua 7. O entorno não mais respira a este ar, cada vez mais em metamorfose no centro de uma cidade em transformação.
Aqui não vamos discutir contrariedade ou não de demolição ou aproveitamento da estrutura (o que chegou a ser uma das hipóteses consideradas), o que talvez se pediria é uma pequena menção ao que ali existiu quando este titã de concreto armado surgir algum dia. Se não mais se pode evitar de apagar a história, ao menos que seus realizadores deixem explicito o porquê daquela esquina ainda ser chamada de Casa Royal.
Afinal, memórias não se apagam da mente de quem, alí, sorriu no interior de um Opala novo. E como o passar do tempo e da nobreza, fecham-se os versos daqueles tempos da gravatinha, dos mecânicos e do kardex...
Royal
Desbotado
Deselegante
Desligado
Enegrecido
Empobrecido
Vazio
Largado
Vai-se memoria
Da gente viva
Da gente morta
Opala
Fecha a porta
Casa Royal
FOTOS: Antigamente em Blumenau / Arquivo Pessoal / AHJFS
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