Antes de mais nada, vamos a um conto cômico. E cômico é pela forma como se deu, diga-se.
E, talvez, se assim não o fosse, creio que a mistica entre a informalidade e a história não seria tão bela quanto.
Era de hábito nas quintas-feiras, na cidade de Santa Rosa (RS), um grupo de bolão se reunir para umas partidas sempre regadas de gritos animados, pinos derrubados e algumas cervejas perdidas nas mesas. Logo depois do treino, o grupo largava as bolas pesadas e pinos para "brincar" com os instrumentos musicais que tinham. Arranhar alguma coisa musical de fato.
Coisa informal, de quem mais gosta de fazer música sem compromisso do que viver dela. Mas numa dessas ocasiões, como consta a lenda, um dos membros do grupo desafiou a outro com uma pergunta intimidante:
"Arnold! Se eu comprar um bandoneon, tu aprendes?" Na afirmativa inocente de Arnold, o amigo lhe deu o dinheiro em mãos no ato, o que assustou o companheiro de pronto com um desafio que, aparentemente, soava uma brincadeira.
Brincadeira? Arnold não podia mais fugir, e a intimação era clara: "Agora não adianta, está todo mundo de prova aqui! Vai ter que tocar!".
História lendária, claro, mas aqueles atos simples dariam corpo a trajetória de um dos mais marcantes nomes da história dos salões de baile, caça-e-tiro e afins do sul do país. E claro, com bailes em Blumenau e todo o Vale sempre concorridos, lotados e esperados por semanas pelos seus frequentadores.
Se em algum dia, entre os nomes mais tradicionais das ditas "bandinhas" clássicas que são ou passaram pelo vale, você ouvir o nome "Os Futuristas", não é exagero e o lugar deles neste panteão é merecido. A brincadeira do bolão em Santa Rosa pode até ter sua dose de lenda, mas que a vocação musical desta turma foi mais forte do que o tino esportivo de derrubar pinos.
Empilharam-se discos e discos com canções que, pela originalidade e estilo prório e rustico, foram sendo reproduzidas a exaustão por bandas das mais recentes as mais experientes na estrada. No entanto, uma trajetória tão longa e vivendo entre altos e baixos teve seu momento de "sumiço", deixando apenas esta mesma memória empilhada em LPs clássicos.
Recentemente, trabalhando em produção de mais um Hallo Freunde para a União FM, o locutor da hora e memorialista musical Alexandre Baumgratz me soltou a dica: "Os Futuristas voltaram". Era ao mesmo tempo que, informalmente, passava os olhos nas redes sociais e comprovava aquilo que Alexandre dissera sem muito alarde, de que o tradicional nome gaúcho da música típica havia voltado aos "bons tempos".
Ato continuo, uma breve conversa com o músico e professor Rodrigo Kienen, um dos mais respeitados do meio, me trouxe um sorriso. Foi pela mão dele e de mais um empresário, fora a resolução de detalhes burocráticos acumulados durante os anos, que Os Futuristas começaram a erguer novamente as vigas da "velha usina" para voltar à estrada.
Foi preciso reunir o quarteto que já mantinha em atividade, o Die Lustigen Musikanten, com alguns dos antigos músicos da banda que já viviam, inclusive, na região de Pomerode para organizar a remontada. Não era para ser mais um esquema de "fecha grupo para um baile apenas", mas um projeto organizado, quase do zero, mas com solidez e pensado pro futuro.
Algumas apresentações vem acontecendo regularmente, quase como uma espécie de preparação contínua da mescla de gente nova e velhos lobos da música no palco. Também aos poucos, o repertório clássico vem sendo remontado e aparece, ocasionalmente, em algumas das apresentações recentes, honrando aquela velha frase que acompanha o grupo desde a origem gaúcha: "relembrando o passado" ou "musicas dos bons tempos".
Alias, os bons tempos é o que mais emana o nome Futuristas quando dito numa roda de saudosos das bandinhas clássicas. As conversas com Kienen a dias atrás eram como um remonte constante de uma outra época, onde a sofisticação das grandes festas de chopp era um traço bem distante e a inocencia de uma longa noite de baile era a fascinação das pequenas comunidades em torno do grupo musical.
No distante 1958, quando Os Futuristas formalizaram o conjunto de fato, os pequenos bailes e grandes festas citadinas ainda carregavam uma carga clássica que, as vezes, dispensava até mesmo os sistemas de som para um bom baile. E com o ritmo que a juventude conquistava seu espaço, falar em "musicas de bons tempos" não era exagero, os "bons tempos" já estavam ficando longe lá mesmo.
A estreia do grupo, de maneira oficial, foi nas ondas da Rádio Progresso, na vizinha Ijuí, cidade que tornaria-se a sede oficial da banda, referencial que virou até musica na vasta criatividade de seus membros iniciais: fora o incauto Arnold Huber estavam o diretor, harry Zilmer, além de Armindo Treter, Rudi Brust, Helio Michaelsen e Reinhard Treter. Três anos depois, somaran-se ao grupo Plinio Michaelsen e Paulo Wassermann.
Na mesma emissora, lhes fora sugerida a primeira gravação em disco pelo apresentador do programa "Relembrando o Passado", Wilson Mânca. Alias, em matéria de gravação, Os Futuristas tinham lá suas manias e histórias, e nas primeiras incursões em estúdio surgira outra história digna de folclore.
Foi em São Paulo, nos estúdios da Chantecler - conhecida por gravar muitas bandas de baile do sul, como Os Montanari - que aconteceu uma das passagens. Depois de quatro horas de trabalho, travados e num esquema bem diferente de ensaiar numa garagem, a banda não conseguia fazer render o dia.
E como fazer um grupo de amigos "destravar"? Um deles sugeriu o mais simples: "tem algum bar aqui por perto? Estes caras são movidos a álcool!". Foi um instante apenas, e de volta ao estudio com uma garrafa de whisky e três de àgua, a coisa fluiu de vez. Fluiu tão bem que, na sobra, ficou apenas duas garrafas de água. Não me perguntem sobre o destino vasilhame de whisky salvador daquele dia.
Discos, contratos, turnês, músicas mais rodadas, sucesso de bilheteria, enfim, exito por anos nascido na inocência do jogo de bolão. No volante do Wilson, o motorista (como a música conta), Os Futuristas viveram a aventura de grandes noites na metade sul do Brasil, incluindo Paraguai e Argentina.
Nem é preciso dizer que, neste roteiro insano, frenético e vitorioso, Santa Catarina era uma parada obrigatória. Vale do Itajaí mesmo era ponto de honra e os bailes por aqui eram em salões concorridos que deixavam marcas de momentos únicos. Kienen recordara que o primeiro baile foi num show d'Os Futuristas, um velho fã da trupe que memorizara os grandes clássicos e, hoje, é um dos homens de frente da turma que tem o Vale tão visitado como a atual morada.
Alias, atual morada também de um velho amigo deste escriba. Quase num por acaso e comprovando a predileção dos velhos membros d'Os Futuristas pelo Vale do Itajaí como residencia, encontrei em um toque no restaurante do Jardim Botânico, em Timbó, aquele que quebraria uma velha tradição da banda: a de ter um crooner, um vocalista quase que oficial.
O encontro com Valdir Zimmermann foi um dos maiores "por acaso" em matéria de história que já tive. Uma de suas filhas foi minha colega de rádio nos tempos de Pérola do Vale (uma grande amiga ate hoje, diga-se), e cada vez que encontrava o velho guitarrista/vocalista da banda, sobravam histórias e faltava tempo para todas. Bailes, a despedida do grupo, alguns "apertos" e o amor que encontrou por estas plagas, tudo regado a um bom mate amargo.
A chegada de "Vadi", gaúcho da gema da mesma Ijuí natal, aos quadros da banda era uma prova da mudança sutil que Os Futuristas se impuseram no decorrer dos anos, mas sem perder a base sonora original. Era uma caracterista particular do grupo a melodia liderada pelo bandoneon, a ausência de instrumentos elétricos e a marcação feita por cavaquinhos e violões.
O tempo e a chegada de nomes como Os Montanari no meio deram notas mais modernas ao som d'Os Futuristas, incluindo a chegada de um guitarrista experiente e que tinha dom de crooner como Valdir. Eram também tempos difíceis, onde a informalidade nas relações cobrava o preço e permita aberrações, como a existencia de outro grupo com o mesmo nome em um breve período dos anos 1970.
Alias, do mesmo Valdir que se guarda outra daquelas histórias curiosas que só a trupe de Ijuí podia proporcionar: o fato de Vadi ser um "conhecido" de minha mãe há anos. Aquela coisa da "foto indiscreta" do membro galã da banda ao pé do palco e cuja Kodak está bem guardada comigo até hoje. Que volta do mundo!
Foi o mesmo Vadi que fez reacender e redescobrir o repertório clássico d'Os Futuristas, além de descobrir o talento vocal deste gaúcho que casou com o estilo tão único de som, entre metais e bandoneon, que fez da banda nascida nas plagas gaúchas uma legítima representante dos mais clássicos e inesquecíveis sons típicos dos ditos e tão repetidos "bons tempos".
Terminada a conversa com Kienen e continuando as histórias antigas com Valdir, o olhar para frente traz uma certa emoção no ar ao saber que, 67 anos passados, Os Futuristas retornaram aos trilhos com uma energia renovada e um toque moderno e sutil ao clássico que sempre foi a marca. Não necessáriamente um germânico, algo que emana tempos de salões pequenos, bailinhos noturnos e tardes dançantes do interior, com todo seu lado tradicional de se fazer uma boa festa.
Classicismo que, felizmente, terá quatro datas na Oktoberfest deste ano, marcando um retorno da trupe aos palcos da maior festa alemã das Américas, o que não acontecia desde 2007 (pelo menos). Também a Festa do Imigrante de Timbó os verá no palco do Henry Paul, numa autêntica volta no tempo antes das famosas festas de outubro de hoje.
Justiça seja feita, se Os Futuristas precisavam de um novo lar para retornar aos "bons tempos", encontraram no Vale do Itajaí uma morada nova, velhos fãs e novos ouvidos para despejar o som único e caracteristico de seis décadas de trajetória. A história continua, com o mesmo sorriso leve, o ar folclórico e o saudosismo moderno que a legenda nascida das quadras de bolão fez brotar entre um pino derrubado e outro.
Assim sendo, deixo eu que o velho lobo Breno Schneider abra o bandoneon uma vez mais par voltarmos no tempo. Arnold topou o desafio e já se vão seis décadas de Os Futuristas, a viagem não pode parar agora.
Gratidão, Futuristas! E daqui do Vale, a nova casa, a gente avisa: "Ijuí, Ijuí Ijuí! As tuas musicas estão aqui!"
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