
"O que você prefere que seu filho tenha nas mãos?"
Inocente e chocante, não? Trata-se de uma frase de efeito, daquelas que marcam qualquer mensagem publicitaria de impacto mesmo que vindas de quem não se espera um choque.
O nome "Hering" não é apenas camisa básica. Em um estalo de dedos, a criança de ontem começa a lembrar daquele acordeon, flauta, piano ou xilofone de brinquedo que ostentava essa marca que, para o leigo, é sinônimo de "o básico do Brasil".
Fundada em 1923 por Alfredo Hering (que não tem parentesco com Hermann e Bruno, os das camisetas), a Fábrica de Gaitas Alfredo Hering foi referencia de localização da da Itoupava Seca e, ainda hoje, é um nome forte e quase insólito das mais famosas harmônicas (gaitas de boca) do país.
Em tempos distantes, gaita de boca era só "mais um" numa linha que ia de gaitas-ponto, acordeons e até os maravilhosos harmônios, favoritos das igrejas do passado. E quando veio a década de 1940, os brinquedos tomaram conta das linhas de montagem da fábrica, os primeiros de que se tem notícia nas prateleiras das grandes lojas e na memória de muita gente.
Era a magia de uma garotada sonhadora ostentar, mesmo em escala reduzida, uma pequena gaita-ponto para fazer barulho ou seguir os passos da musica desde a tenra idade. Sucesso no setor que não tardou a crescer até mais do que a tradicional fábrica de gaitas "para gente grande", que seria adquirida pela alemã Hohner e controlada por ela entre 1966 e 1979.

Mas voltemos nosso olhar aos brinquedos musicais. Em se tratando deste setor, a Hering virou referencia insuperável. A marca a ser batida, a primeira a ser lembrada por qualquer criança que sonhava bem mais do que figuras de ação ou as corriqueiras brincadeiras entre esportes e jogos lúdicos nos quintais e ruas do país. Por que não brincar de musica? Criar uma banda da imaginação?
A gama era enorme: fora as miniaturas de acordeon com qualidade profissional, incluiam-se xilofones, saxofones e clarinetes de plastico aos pianos de todos os tamanhos: de idades iniciais aos modelos maiores e refinados. Até mesmo harmônios em tamanho reduzido que provocavam até os adultos a arriscar os talentos musicais.
Somou-se a estes no periodo antigo uma breve parceria com a argentina Rasti, para a importação de blocos de montar estilo Lego, que durou durante a década de 1970 e meados da de 1980. Apesar da tentativa de diversificação, eram os brinquedos musicais a grande vedete, inclusive formadora de músicos que ainda lembram de sonhar com melodias empunhando um Hering nas mãos. Até mesmo Silvio Santos reconhecia isto em alguns de seus programas nos anos 1970.
Mesmo longe das lojas pelas esquinas financeiras do país, as redes sociais e sites de compras e leilões mostram o valor que os brinquedos musicais Hering ainda tem, com preços que vão de R$ 300 a perto de R$ 1 mil se estiverem funcionando. Seguramente e sem muita pesquisa, estão entre os itens de colecionismo clássico mais desejados, tamanha a raridade dos modelos ou o estado de conservação.
Infelizmente, a turbulencia que afetou a marca do velho Alfredo quase a colocou por terra por completo. Em 1986, foi comprada pela Trol, gigante dos brinquedos do passado que chegou a pertencer ao ex-ministro da economia Dilson Funaro. Mas os descaminhos da economia nacional ruíram a empresa, salva do fogo em 1994 pelo saudoso empresário paulista Alberto Bertolazzi, que a reconduziu ao mercado onde surgira: o de gaitas de boca.
Foram-se os brinquedos, ficaram as harmônicas. A atual SHG Hering conserva até os dias atuais a forma tradicional e detalhada de fabricar cada produto, com tecnica manual e precisão digna de relojoeiros, o que faz ser uma das mais procuradas por músicos profissionais até de fora do Brasil. Está localizada em instalações cercadas de verde e história na Itoupava Central e goza, feliz e com saúde plena, seu status de centenária completo em 2023.
Mas impossivel não sorrir, entre modelos reluzentes para "gente grande", quando se percebe a linha infantil de harmônicas mantida pela marca até hoje. Parece pequena comparada aos tempos áureos dos brinquedos, mas ainda assim é capaz de fazer sorrir algum saudosista que lembra do Hering que tinha em seu quarto e com o qual passava horas em um palco imaginário sonhando com o som.
Época onde o virtual não era nem imaginação, e mesmo assim a perguntaa de ontem parece ainda verdadeira na realidade da criança de hoje.
Afinal, o que você quer que seu filho tenha nas mãos?
(Dedicado à Horst e Carol Schreiber)
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