
A juíza de 2º grau do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Quitéria Tamanini Vieira, alerta que o feminicídio representa o desfecho trágico de um ciclo de violência que, muitas vezes, poderia ser interrompido se os primeiros sinais fossem reconhecidos.
Segundo ela, a agressão física costuma ser precedida por abusos psicológicos, que ainda são ignorados ou naturalizados pela sociedade. Apesar dos avanços na conscientização sobre a violência contra a mulher, Quitéria ressalta que Santa Catarina continua apresentando índices alarmantes, revelando que o problema está profundamente enraizado em uma cultura machista que precisa ser transformada coletivamente.
Questionada sobre os obstáculos que impedem mulheres de denunciarem seus agressores, a magistrada destaca uma combinação de fatores como medo, dependência financeira e emocional, vergonha e desconfiança quanto à efetividade da proteção estatal.
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Em apenas uma semana, três feminicídios foram registrados no Vale do Itajaí. O que esses casos escancaram sobre o cenário atual da violência doméstica na região e em Santa Catarina?
Esses casos soam como um grito de alerta para todos(as) nós, como sociedade. Lamentavelmente, esse alerta é muito doloroso, pois marcado pela dor sofrida pelas vítimas e pelo silenciamento da sua voz com a perda da vida. O feminicídio é o desfecho extremo de um ciclo de violência que poderia, muitas vezes, ser interrompido se fosse percebido desde seu início, pois a agressão física normalmente é precedida pela psicológica (quando as palavras são usadas como instrumento que fere e causa sofrimento emocional).
Não temos a menor dúvida de que a violência contra a mulher continua sendo uma epidemia que, felizmente, está deixando de ser silenciosa diante da progressiva conscientização sobre o assunto. Com isso, a mulher tem percebido os sinais da violência e deixado de considerá-la normal para dar lugar à sua intuição (e instinto de sobrevivência) que manda dizer “basta”, esperando-se que reúna as condições psicológicas, materiais e sociais para buscar ajuda.
Santa Catarina, apesar de seus avanços econômicos e indicadores de qualidade de vida, continua registrando estatísticas muito preocupantes no campo da violência de gênero. Isso demonstra que a gravidade do problema não tem relação direta apenas com questões socioeconômicas, mas com uma cultura machista ainda enraizada, que normaliza comportamentos abusivos e dificulta a prevenção. A mudança desse cenário depende de cada um de nós, sobretudo da resposta que daremos ao desconforto dele decorrente. Afinal, a violência que fere uma mulher, a todas alcança. Por acreditar nisso, nutro esperança num futuro melhor.
Na sua visão, o que ainda impede muitas mulheres de denunciarem agressões e como a justiça pode contribuir para romper esse ciclo de silêncio e medo?
Muitas mulheres ainda deixam de denunciar agressões por um conjunto complexo de fatores: medo de retaliação, dependência financeira e emocional, vergonha, pressão familiar e insuficiente confiança em relação ao amparo do Estado.
Em cidades menores ou regiões interioranas de Santa Catarina, especialmente, o convívio próximo entre vítima, agressor e comunidade intensifica o medo de exposição e julgamento. Há também uma certa insegurança, muitas vezes justificada, em relação à proteção imediata/eficaz esperada com a denúncia, pois mesmo o deferimento das medidas protetivas pressupõem, além das ações protetivas esperadas das instituições (especialmente Poder Judiciário, Polícia Civil e Militar), também um olhar de cuidado, apoio e solidariedade por parte das pessoas que compõem a rede de proteção da vítima.
Certamente, muitas adversidades virão, porém num contexto diferente daquelas enfrentadas pela vítima ao tempo da violência a que era submetida. Ou seja, é preciso escolher qual desafio a mulher quer enfrentar: o de suportar a violência reiterada, mesmo sabendo do risco de seu agravamento ou o de denunciá-la para que seja interrompida, dando lugar a um novo capítulo da vida no qual ela não fará parte.
De que forma a Lei Maria da Penha vem sendo aplicada no Vale do Itajaí? Há avanços no atendimento das mulheres em situação de vulnerabilidade?
A Lei Maria da Penha é um marco no enfrentamento da violência doméstica no Brasil e, no Vale do Itajaí, assim como em outras partes do estado, sua aplicação tem avançado, especialmente no que diz respeito à concessão de medidas protetivas e no fortalecimento de delegacias especializadas. Esforços estão sendo envidados para treinar equipes multiprofissionais e desenvolver protocolos de atendimento humanizado.
No entanto, ainda existe um grande desafio em relação à busca da máxima efetividade dessas medidas e ao acompanhamento da vítima na fase que se segue à denúncia. Muitas mulheres recebem a medida protetiva, mas não contam com condições para seguirem os capítulos seguintes da vida com segurança, respaldo financeiro e apoio familiar e social, circunstâncias que afetam diretamente seu bem-estar psicológico.
Um problema social tão grave e complexo como esse exige medidas que vão além da proteção prometida pela lei e expressa num documento judicial: é necessário garantir segurança real, criando redes de proteção interligadas, com comunicação eficiente entre Polícia, Judiciário, Ministério Público, órgãos públicos responsáveis pelos atendimentos necessários (especialmente na área do serviço social e psicologia), sociedade e família.
Não há forma mais eficiente de fortalecer uma sociedade que não pela via da informação e da comunicação. É pela falta de uma ou de outra, senão de ambas, que temos amargurado angústias e dores de diversas ordens, sendo a violência contra a mulher destacado exemplo disso.
Há estrutura e equipes suficientes no judiciário local para atender com agilidade os casos de violência doméstica e garantir medidas protetivas eficazes?
A realidade local é desafiadora diante de uma sobrecarga crescente no sistema judiciário, porém este cenário tem motivado a busca de estratégias para o enfrentamento dos problemas então vivenciados, o que tem dado lugar a programas de compreensão sobre o fenômeno da violência doméstica, de acolhimento das vítimas, de conscientização dos agressores (para além da aplicação da penalidade legal).
Para muito além da agilidade na deliberação das medidas protetivas e no julgamento dos processos respectivos, o Poder Judiciário tem implementado tais ações visando coconstruir, juntamente com a sociedade, um novo cenário de convivência, pautado pelo respeito, compreensão e solidariedade.
Exemplo disso é o Projeto Florescer implementado na Comarca de Blumenau, por meio do qual as mulheres vítimas de violência domésticas são convidadas a participar de encontros (online e presenciais) para conversarem, num ambiente seguro, sobre seus receios, desejos e desafios enfrentados após tomada a decisão de dar um “basta” à violência. Enquanto tramita o processo judicial respectivo, a mulher tem a oportunidade de se fortalecer a partir do contato com outras histórias que, como a sua, encontram na fala e na escuta, inestimável potencial de transformação.
Como o judiciário tem trabalhado em parceria com outros órgãos, como a polícia, Ministério Público e serviços de assistência social, para garantir uma rede de proteção às vítimas?
Com certeza, a rede de enfrentamento à violência doméstica funciona de forma mais eficaz quando há integração entre Judiciário, Polícia Civil e Militar (inclusive Rede Catarina), Ministério Público, Advocacia, Defensoria Pública e Serviços de Assistência Social e de Psicologia, Imprensa, além das organizações não governamentais e da sociedade em geral.
Já contamos com recursos importantes nesse sentido, a exemplo da agilidade do fluxo de comunicação (em que a medida protetiva concedida pelo juiz é imediatamente comunicada à Polícia Militar para fiscalização e ao serviço social para acompanhamento familiar). A capacitação constante dos profissionais envolvidos e o uso de tecnologia para integrar sistemas são estratégias que, embora já eficientes, podem ser ainda mais eficazes.
É importante destacar que a rede de proteção não se resume à resposta imediata ao crime: ela envolve acompanhamento psicológico, oferta de capacitação profissional e suporte habitacional quando necessário, para que a vítima possa reconstruir sua vida longe da violência. E, mais que isso, para que possa escrever sua própria história com dignidade, bem-estar e coragem para romper com as crenças limitantes consolidadas ao longo do tempo para se sentir merecedora de felicidade. A meu ver, uma vida feliz é muito mais que uma vida sem infelicidade.
O Agosto Lilás é o mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher. Quais ações o judiciário tem promovido para ampliar a proteção às vítimas e incentivar as denúncias?
O Agosto Lilás tem se consolidado como um período importante de mobilização social contra a violência de gênero. O Poder Judiciário tem realizado palestras, campanhas educativas e mutirões de análise de medidas protetivas para ampliar a rede de proteção. Também são realizadas parcerias com escolas, universidades e empresas para conscientizar sobre os diferentes tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha, como a psicológica, patrimonial e moral.
A ideia é que o mês de agosto funcione como um catalisador para o restante do ano, reforçando mensagens sobre prevenção, acolhimento e denúncia. Contudo, é essencial que tais ações não fiquem restritas a um único período, mas sejam mantidas de forma permanente, pois o enfrentamento à violência doméstica exige vigilância, atuação contínua e sensibilidade para com a dor de outra mulher.
Sobre a campanha Sinal Vermelho, como que ela funciona?
A campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica é uma iniciativa simples, mas poderosa, criada para oferecer às mulheres uma forma discreta de pedir ajuda. Funciona da seguinte forma: a vítima desenha um “X” vermelho na palma da mão (usando o que tiver à mão, como batom ou caneta) e a mostra para um atendente de farmácia ou servidor público.
Essa campanha tem sido tão difundida que, acredito, muitas pessoas no meio social saberiam reconhecer um pedido de ajuda feito desse modo. A partir daí, quem recebe o sinal, após assegurar que a vítima está resguardada, aciona imediatamente a polícia, garantindo que a mulher seja socorrida sem precisar falar, o que é crucial em situações em que está sob vigilância do agressor.
No Vale do Itajaí, diversas farmácias já aderiram à campanha, havendo capacitações constantes para ampliar o número de pontos seguros. Sonho com o dia em que toda a sociedade esteja atenta ao olhar da mulher, a ponto de reconhecer sua angústia para lhe prestar o apoio que precisar. Vale lembrar que cada mulher é a protagonista da sua própria história, por isso, compartilho uma dica: ao invés de dizer que o ela deve fazer, coloque-se à disposição para ampará-la naquilo que ela quiser (para isso, estabeleça um canal seguro aberto para que ela possa formular algum pedido quando/se porventura for necessário).
Que papel a educação e a conscientização social desempenham na prevenção da violência doméstica, e como o judiciário pode contribuir nesse processo além da atuação punitiva?
A prevenção da violência doméstica começa muito antes de qualquer processo judicial: ela nasce da educação e da mudança cultural. Noutras palavras, ela nasce na conversa em família durante uma refeição, no encontro festivo entre amigos(as), numa reunião de trabalho, numa atividade escolar, enfim, em qualquer lugar e com qualquer pessoa com quem tenhamos a oportunidade de conversar sobre o respeito que deve nortear a convivência, inclusive nas situações conflituosas.
Não podemos mais naturalizar comportamentos machistas pautados pelo controle sobre a mulher, pela desvalorização da sua voz e, o que é mais grave, pela tolerância à agressão. Nenhuma espécie de agressão pode ser tolerada, nem a que fere o corpo e nem a que fere a alma.
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