Eles estão por trás de cada viagem de ônibus feita na cidade. Atuam como motoristas ou cobradores. E há quem já tenha trabalhado nas duas funções. Nem sempre eles são notados na correria de quem entra e sai do transporte coletivo diariamente. Por isso, nesta terceira parte do projeto “Transporte Público Collab”, convidamos você a conhecer algumas das histórias destas pessoas que garantem que o serviço público funcione - independentemente das dificuldades do cotidiano movimentado de todos nós.
Reportagem: Natiele Oliveira e Alice Kienen
Quem encontra a motorista de ônibus Katia Regina dos Santos todos os dias com um sorriso no rosto nem imagina o que ela teve que enfrentar no último ano. Em 2020, Katia recebeu uma notícia difícil. “Entrei num centro cirúrgico para retirar um nódulo que era benigno, que eu já tratava há dois anos. Naquele momento, os médicos descobriram um câncer de mama. Foi assustador, mas eu precisava ser forte por conta dos meus filhos. Ali começou a luta”.
O diagnóstico inesperado foi dado em maio. A partir daquele momento, Katia precisou ter coragem para enfrentar o novo cenário e tratar-se da doença. Olhando para trás, pensando em tudo que passou, Katia acredita que o diagnóstico do câncer veio para torná-la uma mulher ainda mais forte.
Hoje, aos 44 anos de idade, Katia consegue ver e valorizar mais facilmente as pequenas belezas da vida. Graças à descoberta da doença na fase inicial, após tomar os medicamentos receitados pelos médicos e fazer quimioterapia e radioterapia, ela conseguiu superar a doença e voltar ao trabalho.
A motorista do transporte público de Blumenau lembra o quanto foi complicado lidar com todas as emoções que surgiram após o diagnóstico de câncer. “Acredito que a parte mais difícil foi quando eu contei para os meus filhos. Eles são muito apegados a mim”, recorda.
Katia sempre foi mãe “solo” de dois homens. Eles estão, atualmente, com 28 e 18 anos de idade, respectivamente. “Eles ficaram desesperados, com medo de eu não conseguir passar por isso”, explica. Algumas vezes os filhos de Kátia choravam, preocupados com a mãe, e ela precisou ser forte para consolá-los.
Atuando há oito anos no transporte coletivo de Blumenau, Katia migrou da função de cobradora para a de motorista de ônibus há pouco mais de um ano. A mudança foi conquistada com muita força de vontade.
Antes de atuar no transporte público da cidade, Katia trabalhou como faxineira e atendente de posto de gasolina. Segundo a própria Katia, ela sempre trabalhou no que era necessário para pagar as contas.
A responsabilidade de dirigir um ônibus era um dos sonhos de Katia. O processo para virar motorista começa quando os interessados em assumir esta função e que já atuam no transporte público da cidade se inscrevem em uma lista.
Depois deste primeiro passo, a concessionária faz uma pré-seleção dos candidatos que cumprem os critérios estabelecidos para a função. Em seguida, quem foi selecionado faz um curso profissionalizante.
Katia, depois de todas essas etapas, fez um teste prático e passou. Mas a mudança de função não foi imediata. Ela seguiu trabalhando como cobradora até surgir uma vaga de motorista. No caso dela, a mudança de cargo demorou três meses para ser feita.
Katia voltou à rotina de trabalho como motorista de ônibus em Blumenau em agosto de 2021. Ela ficou afastada da função, para fazer o tratamento médico, durante 17 meses. Voltar ao trabalho, segundo ela, foi uma experiência muito boa. Ela diz que estava ansiosa por esse momento.
Katia pedia aos médicos para voltar ao trabalho desde que recebeu o diagnóstico do câncer de mama. “Essa volta foi essencial para a minha cabeça, saúde, pra tudo. Não via a hora de voltar”, comemora.
Como motorista, ela trabalha oito horas, seis dias por semana, e faz trajetos que contemplam os bairros Água Verde; Velha, com as linhas dos Caçadores e Jorge Lacerda; e Itoupava Norte, levando os passageiros das linhas Ponte Tamarindo e 25 de Julho.
A superação vivenciada por Katia não se resume apenas ao tratamento contra o câncer ou pela trajetória até conseguir uma colocação melhor na vida laboral. Diariamente, a exemplo de diversas outras mulheres que atuam em funções “tradicionalmente” (até quando?) ocupadas por homens, ela enfrenta o preconceito.
Conduzindo um veículo de grande porte pelas concorridas vias de Blumenau, Katia já sofreu diversos xingamentos - certa vez, chegou a ser chamada de “vaca” por um outro motorista no trânsito. “Eu tento ignorar quando acontece esse tipo de coisa comigo. Sei que se eu retrucar, é pior. Então, tem vezes que até brinco mandando beijos e tal”, comenta, sempre sorrindo.
Além dos xingamentos de motoristas no trânsito, Katia teve que enfrentar preconceito e piadas de mal gosto de outros funcionários quando começou a trabalhar como motorista. Mas o pior mesmo, foi uma situação perigosa que ela passou quando ainda atuava como cobradora.
“Uma vez, no trabalho, um homem estava bêbado e ficou me ameaçando com uma faca. Mas, depois, tudo acabou bem.” Na época, o motorista que estava com Katia a ajudou a se livrar da ameaça.
Aos 52 anos de idade, Pradelino Moreira da Silva se orgulha muito da trajetória profissional que construiu até aqui. A principal fonte de satisfação para ele foram as melhorias trazidas para quem atua no transporte público da cidade, conquistadas após vários anos de lutas através do Sindicato dos Empregados do Transporte Coletivo Urbano (Sindetranscol).
Antes de ser dirigente sindical, Pradelino atuou como motorista do transporte público em Blumenau. No período entre 2017 e 2021, ele trocou a posição atrás do volante para assumir a função de presidente do Sindetranscol.
Desde junho deste ano, ele ocupa a posição de vice-presidente da entidade, que tem Osnir Schmitt na presidência. Se somarmos todos os cargos desempenhados por Pradelino até hoje, ele tem quase duas décadas de atuação no transporte público da cidade.
Natural de Videira, cidade localizada no Meio-Oeste catarinense, Pradelino mudou-se para Blumenau em 2002. Logo que chegou na cidade, ele começou a trabalhar como motorista na Rodovel, uma das empresas que faziam parte do Consórcio Siga, então responsável pelo transporte coletivo do município.
Antes de começar a trilhar as ruas de Blumenau atrás do volante de um ônibus, Pradelino trabalhava como caminhoneiro. A experiência e a paixão por dirigir sempre foram pontos marcantes na vida dele.
A mudança vivenciada em Blumenau é que, ao invés de transportar cargas, ele passou a levar pessoas. “Nós transportamos as pessoas, a gente leva a riqueza da cidade, que é o povão”, enfatiza.
Atualmente, Pradelino cumpre a carga horária exigida pela empresa para os motoristas de ônibus, de oito horas cinco dias por semana, na sede do sindicato. Antes, até 2017, quando assumiu pela primeira vez um cargo no sindicato, ele fazia parte da rotina dos passageiros das linhas Bela Vista, na época da Rodovel; Caçadores e Jorge Lacerda, estas duas últimas já na fase da Blumob.
Para Pradelino, dirigir no trânsito de Blumenau é uma tarefa complicada. Ele afirma que “tira de letra” esse desafio por ter um comportamento sossegado e tranquilo. Mas, na visão do motorista que atualmente trabalha como sindicalista, é justamente esse trânsito complicado que provoca os atrasos nas viagens do transporte público.
Outra causa dos atrasos, segundo Pradelino, são as situações que envolvem as falhas mecânicas dos ônibus. “Nunca queremos atrasar, mas às vezes acontece, e o cliente não entende”, comenta.
No período em que trabalhou como motorista de ônibus, Pradelino dirigiu por bairros que têm “fama ruim” na visão de alguns, segundo ele, levando passageiros de linhas como República Argentina, Araranguá e Progresso.
Apesar de alguns comentários ruins sobre estes trajetos, ele disse nunca ter tido problema como motorista destas linhas. “Graças a Deus nunca passei por um assalto ou algo parecido. Tenho sorte”, acredita.
O sindicalista, enquanto atuava como motorista, nunca teve problema com assaltos, mas teve que lidar com alguns usuários bêbados. Para enfrentar as situações delicadas, ele levou tudo “na brincadeira”. “Eu relevei tudo que rolou comigo por que, afinal, quem nunca bebeu umas?”, brinca.
No dia a dia da profissão, Pradelino sempre buscou, como os relatos acima revelam, ter um ótimo relacionamento com os passageiros do transporte público. E isso não muda quando ele fala sobre a relação com os colegas de trabalho. “Nós vivemos muito tempo juntos, né?! Temos que nos dar bem. Por isso, eu sou bem amigo de todos”, destaca o vice-presidente do Sindetranscol.
O Sindetranscol, conforme Pradelino, é o único sindicato do Brasil que tem 96% da sua composição formada por trabalhadores da categoria - ou seja, por motoristas e cobradores de ônibus. Esse diferencial é motivo de felicidade para o vice-presidente do sindicato, que afirma que sempre esteve engajado com as pautas dos trabalhadores do setor na cidade.
Para fazer parte do sindicato, é simples. O trabalhador só precisa preencher uma ficha cadastral e pagar a mensalidade, que varia de R$ 40 (no caso dos motoristas) até R$ 30 (no caso dos cobradores).
Na avaliação de Pradelino, os direitos que os motoristas, os cobradores e os sindicalistas têm hoje, como o valor do salário, o ticket alimentação, o plano de saúde, entre outros, foram conquistados pelo sindicato.
Mas a realidade para a categoria é desafiadora. O quadro de funcionários do transporte público da cidade era de 1.250 trabalhadores até os primeiros casos de Covid-19 começarem a ser registrados em Blumenau. Com a diminuição de linhas e de horários, começaram os cortes no efetivo. Segundo Pradelino, mais de 300 pessoas perderam seus empregos desde março de 2020.
Tentando reverter este quadro, o sindicato busca fazer com que os trabalhadores demitidos por conta da pandemia do novo coronavírus retornem ao trabalho. Para favorecer o sistema de transporte e ajudar os passageiros, o Sindetranscol vem lutando para que os horários dos ônibus voltem à normalidade. “Para voltar ao normal, ainda vai demorar bastante, mas estamos fazendo até o impossível pra isso acontecer logo”, explica Pradelino.
Na avaliação do vice-presidente do Sindetranscol, os trabalhadores costumam se organizar junto ao sindicato quando acham que é o momento de lutarem por seus direitos através de manifestações públicas. Mas muitas negociações acontecem antes destas manifestações acontecerem.
“A greve não é o nosso objetivo, mas se torna a saída para conseguirmos as coisas. É a última arma que a gente tem quando o patrão não ouve a gente e não abre mão. Até porque temos esposa, filho, amigo que também usam ônibus. Não queremos prejudicar ninguém. É só uma forma de luta pra conseguir o que a gente quer pros trabalhadores”, explica Pradelino.
Há 17 anos atuando no transporte coletivo de Blumenau, Marlene Satiro, de 57 anos, foi a segunda mulher a atuar como cobradora de ônibus na cidade e uma das fundadoras do Sindetranscol. Apaixonada pela atividade, ela agarrou todas as oportunidades que encontrou pela frente na busca por melhorar as condições de trabalho dela e dos colegas.
Em 2006, enquanto ainda era uma das únicas mulheres no ramo, Marlene não aceitou a cobrança de taxa na conta salário dos trabalhadores do transporte coletivo da cidade. Junto de outros motoristas e cobradores, ela se movimentou para formar o sindicato e lutar pelos direitos dos funcionários.
“Antes da fundação do Sindetranscol, trabalhávamos até 15 horas por dia sem regramento de turnos e folgas. Hoje, trabalhamos 7 horas por dia com uma folga semanal no sábado ou no domingo, alternando semanalmente, e temos uma folga casada, ou seja, sábado e domingo”, explica.
Antes de entrar no transporte coletivo de Blumenau, Marlene trabalhou no comércio. “Confesso que detestava. Entrar como agente de bordo (cobradora) foi difícil por conta do machismo. Era como matar um leão por dia. Mas também me sentia realizada e orgulhosa pelas mulheres de Blumenau, uma cidade tão conservadora”, ressalta.
Marlene comenta que a atenção exagerada ao fato de ela ser mulher a incomodava no início. Havia muita desconfiança, por parte dos usuários do transporte público e até de colegas, da capacidade que ela teria para desempenhar as tarefas da função. Entre os desafios do dia a dia, ela teve que enfrentar episódios de assédio sexual e psicológico.
“Acabei usando as ‘armas’ que dispunha para combater o julgamento. Por exemplo, quando trabalhava com um motorista novo, já deixava claro: ‘Eu vou te respeitar se você me respeitar. Você faz seu trabalho e eu faço o meu. Se tentar me ferrar por ser mulher, ferro você com a chefia’”, recorda.
Com o tempo, a fama de durona de Marlene se espalhou e ela não precisou mais convencer os colegas. Além disso, receber elogios das usuárias do transporte coletivo a inspirava. “Eu me sentia e me sinto muito à vontade, pois amo o que faço”, enfatiza.
Na avaliação de Marlene, o espaço conquistado pelas mulheres no transporte coletivo de Blumenau abriu espaço para novas oportunidades. Especialmente após a representação sindical feita por ela a partir de 2006. Entre as conquistas desde então, está a possibilidade das mulheres também atuarem como motoristas dos ônibus.
Questionada se teria, ela própria, interesse em ser motorista, Marlene explica que nunca teve vontade de assumir esta função por perceber o estresse que os colegas passam. “Não foi falta de oportunidade, nem de incentivo. Nós, agentes de bordo, já sofremos junto, mas com menor intensidade”, acredita.
No dia a dia da profissão, os cobradores enfrentam os mais diversos desafios entre um sacolejar e outro de ônibus. Para Marlene, a importância desta função está relacionada com o apoio que o cobrador dá na hora de controlar a abertura de portas e na atenção aos passageiros, auxiliando no controle do serviço e garantindo que o motorista fique focado no trânsito.
“Isso inibe a ação de ladrões e o assédio às mulheres. Também auxiliamos os usuários no que está ao nosso alcance, dando atenção especial às pessoas idosas, mães com crianças, etc. Fazemos o possível para garantir segurança e comodidade para todos”, detalha.
Após ter atuado em quase todas as linhas de ônibus de Blumenau, Marlene trabalha atualmente na bilheteria do Terminal da Fonte. Entre o trabalho nesta função e a atividade sindical, ela usa o tempo livre para cuidar da irmã com a ajuda do filho, hoje com 31 anos.
Entre os planos que tem para o sindicato, Marlene reforça a importância de continuar batendo nas teclas de levar informações e conhecimento sobre consciência de classe, melhorar e conscientizar em relação a preconceitos que possam existir entre os trabalhadores e que envolvam gênero, raça, cor, orientação sexual, entre outros tópicos. “A luta é diária”, conclui.
A madrugada é a companheira diária de Paula Santos Fernandes, de 54 anos, que atua como agente de bordo (cobradora) do transporte público de Blumenau há 12 anos. Aos sábados, o despertador dela toca às 2h. Nestes dias, Paula acorda um pouco mais cedo que o habitual para dar tempo de preparar o café para o trabalho.
No restante da semana, ela acorda às 4h, garantindo mais duas horinhas de sono. Enquanto a maior parte da cidade segue dormindo, Paula acorda para trabalhar nas primeiras linhas que operam no transporte urbano de Blumenau.
Interessada pela profissão de cobradora de ônibus, depois de atuar em outras empresas e em outras funções, Paula enviou currículo buscando uma vaga no transporte coletivo de Blumenau. Nos últimos 10 anos, ela pensou em mudar de função e tornar-se motorista de ônibus, mas acabou desistindo da ideia.
“É bem cansativo, mas é gratificante. Não me vejo trabalhando em outro lugar. Eu gosto porque conheço muita gente, faço bastante amizade e conheço muitos lugares diferentes. Acredito que nós somos os trabalhadores que acordam mais cedo, pois somos nós que levamos as pessoas pro trabalho”, observa.
Como Paula entrou na carreira após outras mulheres terem conquistado os seus espaços, ela afirma que não sentiu tanto o peso do preconceito por atuar no setor do transporte público. Ela considera os colegas parte da família, especialmente pelo tempo que eles passam juntos diariamente.
“O meu trabalho é leve, mas, mesmo assim, é difícil. Tem gente que diz que não fazemos nada, é só passeio. Mas passar por tantos lugares em um ônibus balançando cansa também”, explica. Em sua trajetória até aqui, Paula foi vítima de criminosos em dois momentos.
Durante um dia de expediente, ela foi vítima de furto no Terminal da Proeb. Um homem entrou no ônibus e levou o dinheiro que tinha sido coletado até aquele momento. Testemunhas tentaram impedir o criminoso de fugir, mas não conseguiram detê-lo a tempo.
O outro furto aconteceu enquanto Paula esperava o ônibus buscá-la para ir até o trabalho. Era cerca de 3h15 quando um carro parou perto dela e um homem levou a bolsa que ela usava e que tinha dentro carteira e celular. O aparelho era novo e Paula ainda estava pagando por ele, mas não conseguiu recuperá-lo.
“Foi uma situação muito difícil. Não tinha ninguém na rua. Fiquei chorando no ponto de ônibus. Cheguei a correr atrás do assaltante, mas ele foi embora no carro. Depois disso, nunca mais fiquei no ponto sozinha”, comenta.
Funcionária desde a época da antiga empresa Glória, que operava em Blumenau, Paula tem experiência em greves do transporte coletivo. Ela ainda aguarda receber os salários atrasados dos quais tem direito. E reforça que a paralisação nunca é uma vontade dos trabalhadores.
“É muito desgastante. Sempre tentamos, de todas as formas, fazer um acordo. Mas quase sempre não dava. A empresa (Glória) não aceitava essa conversa. Cada um se reunia na garagem, tentava negociar com um representante, e ficava até resolver a situação. Às vezes demorava, e outras (vezes) era rápido”, recorda.
Entre 2018 e 2020, Paula também fez parte da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa). Apesar de ter sido a segunda eleita, ela acabou desistindo do cargo por perceber que era mais difícil fazer a diferença do que ela imaginava.
“Você corre atrás de quem pode te ajudar e eles não resolvem. Eu queria muito arrumar o Terminal do Aterro, o mais populoso e o mais abandonado. Fui até o Seterb entregar o pedido, mas sempre me diziam que não podiam fazer mais. Ninguém olha para aquele terminal, não tem jeito”, exemplifica.
Rafael Mafra, de 32 anos, é um dos motoristas de ônibus de Blumenau que começou a trabalhar no transporte público ocupando outro banco: o do cobrador. Antigo promotor de vendas em supermercados e farmácias da região, há nove anos ele iniciou a carreira no transporte coletivo da cidade.
Quando atuava como agente de bordo (cobrador), ele visava o cargo de motorista. Movido por este desejo, Rafael buscou a habilitação de categoria D. “O começo foi bem interessante, pois eu vinha de uma área bem diferente. Então tudo era novidade”, lembra.
Para Rafael, a evolução vivenciada com a mudança de cargo foi natural. “Como cobrador, minha rotina era cobrar a passagem e auxiliar os passageiros e o motorista em qualquer situação necessária. Principalmente no desembarque dos passageiros”, observa.
Como motorista, Rafael começou na linha 510, que passa pela Rua Oscar Burger. Hoje, ele atua na mais movimentada de todas, a linha Troncal 10. Para Rafael, dirigir em Blumenau é uma aventura. “Não sabemos o que nos espera. Passamos por algumas (situações) quase todos os dias, evitando acidentes”, observa.
Quando ainda trabalhava como cobrador, Rosival Viera da Silva, de 42 anos, foi vítima de criminosos enquanto aguardava o ônibus para ir para o trabalho. Na ocasião, ele foi rendido por três homens encapuzados. Além do prejuízo causado pela situação, restou do episódio um trauma. “Qualquer coisa hoje em dia me assusta. Até mesmo um latido ou o miado de um gato”, conta.
A exemplo de Rafael, Rosival foi atrás da habilitação de categoria D porque tinha vontade de mudar de função, saindo do banco de agente de bordo (cobrador) para ocupar a posição de quem conduz os veículos pela cidade. Rosival conta que fez parte, inclusive, de uma época na qual a concessionária do serviço público incentiva esse tipo de promoção.
Mas a trajetória dele foi longa até mudar de função. Ele começou como cobrador aos 15 anos de idade e atuou nesta função por 13 anos. Trabalhar no transporte público de Blumenau foi o primeiro e único emprego dele. Nos últimos 14 anos, Rosival mudou de função e atua como motorista de ônibus na cidade.
Antes da pandemia de Covid-19 mudar a rotina dos trabalhadores do transporte público em Blumenau, Rosival trabalhava no Terminal do Garcia, atuando nas linhas alimentadoras do bairro. Mas, hoje em dia, ele trabalha na mesma linha que Rafael: a movimentada Troncal 10.
No dia a dia da função, Rosival precisa lidar com o trânsito que, segundo ele, é bem complicado na cidade. “Principalmente nos horários de pico. As ruas não suportam o número de carros e os ônibus sofrem bastante com isso. Isso faz parte do show, então toco normal”, ensina.
Motorista de ônibus há 18 anos, Meri Teresinha Cardoso Mafra foi a primeira mulher a assumir o volante de um coletivo em Blumenau. Hoje com 54 anos, ela relembra uma trajetória em que foi desencorajada por muitos a seguir a carreira. Apesar dos votos contrários, ela diz que nunca pensou em desistir.
“No começo, foi bem difícil, pois muitos não aceitavam uma mulher nessa profissão. Tive que quebrar várias barreiras. (Mas) Eu ergui a cabeça e segui em frente. Falava pra mim mesma: ‘se eles conseguem, eu também consigo’. Muitos me diziam que não aguentaria nem três dias”, recorda.
Superada a resistência inicial, Meri foi trabalhando, dia após dia, por muito mais tempo que aquela projeção inicial de quem duvidava dela. Aos poucos, ela foi percorrendo todas as linhas do transporte coletivo da cidade. Atualmente, ela dirige nos ônibus das linhas 153, 154, 158, 155 e 120.
Para Meri, a maior parceria que ela tem durante a rotina de trabalho são os agentes de bordo (cobradores). “Alguns passageiros são um amor. Outras pessoas são muito mal-educadas e não dão nem um simples bom dia. Mas sempre temos que entender o lado deles e ser gentil. Às vezes a pessoa precisa de atenção e isso eu sei fazer muito bem. Sou atenciosa com todos”, ensina.
Apesar do preconceito que enfrenta todos os dias e, também, por conta dele, Meri busca encorajar outras mulheres a trabalharem como motoristas. Na verdade, ela defende que a mulher possa seguir a carreira que ela desejar.
A própria Meri já atuou em diversas frentes antes de se tornar pioneira entre as motoristas de ônibus da cidade. Antes, trabalhou como promotora, frentista, mototaxista, costureira e com contabilidade.
“Meu conselho é pensar positivo. ´Eu posso. Eu consigo’. Quando alguém lhe der algum conselho sobre como trabalhar, que elas peguem só o que for útil, e o resto, joguem fora”, ensina.
Motorista há 13 anos da rota mais movimentada do transporte coletivo de Blumenau, a linha Troncal 10, Clarice Weege confirma que foi difícil começar na carreira por ser mulher. Hoje aos 43 anos de idade, ela recorda como foi assumir o espaço atrás do volante aos 30, quando ainda era comum sofrer com a resistência dos colegas.
“Nunca sofri nenhum assédio, mas sim preconceito por ser mulher. No início, foi um pouco difícil, porque sempre tem machismo. Acham que lugar de mulher é atrás do fogão”, conta. Antes de trabalhar como motorista de ônibus, a blumenauense trabalhava em uma função mais “tradicional” para as mulheres na cidade: como costureira.
Sendo mulher, Clarice vivenciou situações nas quais a sororidade (empatia com outras mulheres) se mostrou necessária e fundamental. Em um ônibus com a cobradora grávida, certa vez, ela precisou acudir a gestante que começou a sentir fortes dores durante uma viagem. O apoio de uma passageira também foi primordial naquela ocasião.
“Tive que prestar socorro rapidamente. Parei em um ponto de ônibus e pedi para os passageiros descerem e pegarem o próximo (ônibus). Uma das passageiras se ofereceu para ir junto no hospital porque o ônibus não chegava na porta do pronto-socorro. Graças a Deus, deu tudo certo”, recorda.
Em 2013, houve um atentado onde diversos ônibus foram queimados em Blumenau. Clarice foi uma das pessoas que presenciou aqueles momentos de tensão. “Enfrentei com medo, pois não sabia se o próximo (ônibus) a ser queimado poderia ser o que eu trabalhava ou um no qual a minha família estivesse dentro”, recorda.
Na opinião de Clarice, a qualidade do transporte coletivo na cidade precisa de melhorias. “Não temos linhas e horários suficientes. Os ônibus estão cheios, principalmente, no horário de pico. Muitas pessoas deixaram de usar ônibus por causa da demora ou da superlotação”, argumenta.
A parceria com os passageiros é um ponto importante nas memórias de Clarice. Não apenas em momentos bons, mas também nos difíceis. Ela recorda quando, em uma madrugada, foi escalada para dirigir pela linha Itapuí, que passa pela Rua Engenheiro Odebrecht, e precisou de auxílio para manobrar o veículo.
“Chovia muito, e a estrada de chão ficou muito lisa. O ônibus não subiu, e tive que pedir ajuda a um dos passageiros para ajudar a manobrar o ônibus até um local seguro para fazer a volta e seguir viagem”, conta.
Com essa ajuda, Clarice conseguiu resolver o problema. Apesar dos desafios cotidianos de quem conduz um ônibus pela cidade, ela considera a tarefa de dirigir pelas ruas de Blumenau tranquila. Assim como a relação com os colegas, que vê como amigos. Fora do banco de motorista, Clarice se dedica à família e a cuidar de si mesma.
“Minha rotina diária é bem apurada, mas sempre tiro um tempo para mim. Faço academia e gosto de jogar bola. Tenho dois filhos: a Ana Paula, de 26 anos, que já é casada, e o Lucas Eduardo, de 20, que é solteiro. Meu marido é super parceiro. Sempre me apoiou em tudo”, explica.
Mais do que estudar, experimentar uma das maiores tendências do jornalismo na atualidade. Essa foi a proposta do trabalho de jornalismo colaborativo “Transporte Público Collab”, desenvolvido em parceria entre o curso de Jornalismo da FURB, os veículos de comunicação Jornal de Santa Catarina, O Município Blumenau e Portal Alexandre José e os especialistas em mobilidade urbana Acires Dias e Christian Krambeck.
O projeto, entregue como atividade final da disciplina Laboratório de Escrita Jornalística Colaborativa, foi desenvolvido pelos acadêmicos do 6º período do curso de Jornalismo. Giulia Machado, Isabella Cremer, Julia Bernardes Laurindo, Maria Luiza de Almeida Küster, Natiele Oliveira e Pedro Museka trabalharam em parceria com os jornalistas Pedro Machado (Santa), Jotaan Silva, Cristóvão Vieira e Alice Kienen (O Município Blumenau) e Jamille Cardoso (Portal Alexandre José). O acadêmico Thiago Gomes desenvolveu as reportagens que produziu com apoio de Acires Dias e Christian Krambeck.
As reportagens sobre o tema “transporte público” serão publicadas até sábado (25) nos sites dos veículos que fazem parte do projeto e no site de jornalismo digital do curso de Jornalismo, o Nosso TAL (www.nossotal.com). Confira, abaixo, o cronograma de publicações da série:
Segunda-feira (20): “Transporte coletivo sob investigação”, de Isabella Cremer e Jamille Cardoso
Terça-feira (21): “Como chegamos até aqui”, de Giulia Godri Machado e Pedro Machado
Quarta-feira (22): “Histórias de quem faz o transporte coletivo de Blumenau”, de Natiele Oliveira e Alice Kienen
Quinta-feira (23): “Vale o quanto pesa?”, de Maria Luiza de Almeida Küster e Pedro Machado”, e “Usuários à margem do sistema”, de Júlia Bernardes Laurindo e Jamille Cardoso
Sexta-feira (24): “Transporte público para além dos ônibus”, de Pedro Museka, Jotaan Silva e Cristóvão Viera
Sábado (25): “Como outras cidades de SC lidam com o transporte público”, de Thiago Gomes, Acires Dias e Christian Krambeck
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